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A dor e a delícia de ser o que é

Estava a ler um artigo no O globo assinado por Maria Lucia Rodrigues, filha do dramaturgo, jornalista, escritor e cronista genial que foi Nelson Rodrigues. Entre outras coisas ela falava da relação de amor com o pai, a quem ela se refere como um ser humano doce, gentil e às vezes severo. Lúcia ainda lembrou, não sem uma certa dose de orgulho o pioneirismo do escritor e extremo espírito de compaixão, generosidade e sensibilidade em defender causas tão nobres como o preconceito racial. Num tempo em que não era fácil dizer que existia racismo no Brasil.
Atenho-me ao fato, pois este é o motivo da crônica.
Só para a gente se situar um pouco: a década era de 40, o ano 1946, Rio de Janeiro, século XX. O país atravessava uma fase de transição na maneira de governar. Saia de um período conturbado no âmbito social e entrava num período onde reinava a esperança num país livre e desenvolvido. Nessa época, Rodrigues tentava encenar a peça “Anjo Negro”, que havia escrito especialmente para o ator, igualmente negro, Abdias do Nascimento e foi advertido pela produção do espetáculo que convidasse um ator branco e depois tingisse de preto.
Escusado dizer que o dramaturgo não acatou a sugestão dos produtores, bateu o pé, como era peculiar dele, e prevaleceu o bom senso. E o bom dizia senso que seria o Abdias do Nascimento o papel principal da peça.
Foi aí que me lembrei do Abdias do Nascimento, um anjo que um dia cruzou o meu caminho e sem mais, assim como quem não quer dizer nada, me disse uma das coisas mais belas de que já ouvi em toda minha vida e que precisava ouvir para que ela (a vida) fizesse algum sentido. Disse-me ele: “Vai João ser gauche na vida”. Só muito tempo depois é que fui entender o verdadeiro significa do vocábulo francês extraído de um poema de Drummond.
Ator, escritor, dramaturgo, brasileiro, nascido em Franca (SP). Nascimento criou o “Teatro Experimental do Negro”, o “Dia da consciência negra”, e fundou o jornal ”Quilombo”, primeiro no gênero a lutar pela igualdade racial no país. Quando político (Deputado Federal e Senador da Republica ) defendeu com unhas e dentes os direitos dos afrodescendentes, o que lhe garantiu uma indicação ao Nobel da Paz em 2010.
Um homem incrível que eu tive o prazer de conhecer. Paulista cultíssimo e sofisticado que ouvia Chopin de olhos fechados. Intelectual consciente de seu tempo, orgulhoso de sua cor, sua raça, com quem mantive conversas profundas, definitivas e intermináveis, e que devotou sua vida em favor de uma causa, não uma qualquer, mas a negra. Uma cara que acreditava no ser humano, apesar de tudo e numa sociedade mais justa, sem preconceitos. Não à toa foi considerado o mais completo intelectual do mundo africano do século XX.
No que avanço no texto, penso no humano coração do Abdias. Tento rememorar sua luta (na vida como na arte), lembrar sua dor, a de ser negro, num país onde todos somos pretos de alma branca, desde que fomos descobertos, bem como o seu orgulho de ser o que era. Penso, ainda, nos muitos amigos negros feito pela vida afora. E enquanto penso neles ouço uma música que vem de muito longe e inunda o ambiente, invadindo meus ouvidos. São os versos da canção do Caetano, descubro agora enternecido: “Mas presos são quase todos pretos ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres (...) e todos sabem como se tratam os pretos”. E meus olhos enchem-se de lágrimas.
Com ele, o Anjo Negro, nossas conversas giravam sempre em torno de teatro, de cultura, de arte, de gente (mas de teatro). Ele me aconselhava o melhor caminho a seguir na carreira artística, indicando-me grupos, companhias. Hoje, passado algum tempo, penso, que embora a vida tenha me levado por outros caminhos, que não o Teatro, que amo de paixão e a quem devo tudo, seus conselhos eu os guardo comigo e os carrego aonde quer que eu vá, como uma profecia. Sua amizade será eterna e seus ensinamentos, também.

João Carlos Gonçalves é Empreendedor Social